
Eu tenho um problema sério, logo de manhã cedo… Não gosto de ter que pegar no tranco… sabe aqueles carros velhos que a gente tem que chamar as pessoas que estão passando pra ajudar a empurrar, pra ver se pega no tranco?

Seria humilhante demais pra mim passar por isso… ainda mais que não tenho carro…
Então, preciso de um café preto… tipo às 7 da manhã, daí meu cérebro começa a funcionar melhor. Sem contar que tomar o cafezinho na padaria é uma instituição nacional.

Lá, você encontra os vizinhos, alguns que ainda não despertaram direito e nem é bom puxar conversa… aquela cara amassada realmente não convida para um papo… outros estão animados, falando do futebol do dia anterior, reclamando do gol perdido… Como pode, gente? Como pode a pessoa estar animada pra discutir numa segunda de manhã?
Enquanto, a caminho da padaria, eu filosofava sobre a necessidade de existir um dia entre domingo e segunda-feira – já imaginou que legal, você ter um dia inteiro depois do domingo se preparando pra segunda-feira? – , chego à esquina e vejo um casal de velhinhos.

Devem ser casados… Se normalmente já é complicado manter um relacionamento por alguns meses, como poderiam ter conseguido manter por tantos anos? Fiquei ali parado na esquina, imaginando os dois indo comemorar 70 anos de casados num restaurante, o garçom indica uma mesa ao casal, o velhinho pergunta pra senhora:
— Minha rainha, quer sentar aqui?
— Tá ótimo, meu velho — responde ela.
— Minha princesa, quer um aperitivo pra começar?
E o senhor pede uma entrada ao garçom, que estava ali esperando.
— Meu anjo, o que vamos comer?
A velhinha vai ao banheiro e o garçom não resiste, perguntando ao velhinho:
— Puxa, estou admirado! O senhor usa palavras tão bonitas com a patroa, minha rainha, minha princesa, meu anjo… há quanto tempo o senhor chama a senhora assim?
— Olha, meu filho, não lembro o nome dela faz anos e não tenho coragem de perguntar…
Ah ah ah ah ah!
O cabelo dos dois era tão branco quanto as nuvens no céu azul de inverno… eles estavam encapotados, a senhora usava óculos de sol como os do Neo de Matrix… caminhavam bem devagar, e quando chegaram ao meu lado, resolvi perguntar se eles queriam ajuda:
— Vocês vão atravessar a rua? — perguntei.
— Não, a gente mora aqui na esquina — respondeu a velhinha. — Não é, Tomás?
E os dois desataram a rir com a piada.
— Você é uma pândega, Tetê — disse ele pra velhinha.

Fiquei meio injuriado com a gozação, mas insisti:
— Eu vou até a padaria, a senhora vai atravessar?
— Não — respondeu a velhinha — pisei num chiclete e estou grudada no chão.
Mais risadas dos dois.
Minha ligeira irritação passou na hora… Respostas cretinas para perguntas imbecis… era óbvio que o casal de idosos iria atravessar a rua… E ri junto com eles, contagiado pelo bom humor daqueles dois, cujas idades somadas deviam passar de 150 anos.
Como será que conseguiam manter essa jovialidade, e ainda mais numa segunda-feira? Ahahaha!
Dei o braço para senhorinha, a dona Tetê, enquanto Tomás a apoiava no outro braço, e atravessamos a rua bem lentamente, cuidando para que não tropeçassem no asfalto esburacado. Quando chegamos do outro lado, não resisti e comentei:
— Como é bonito ver os dois assim, tão apegados, um dando o braço pro outro com tanto carinho… — e quase me emocionei com aquela linda exibição de amor.
— Que carinho nada, moço — retrucou a dona Tetê — A gente está se apoiando um no outro pra gente não cair.
E lá iam os dois novamente, rindo alto. E ela me olhava com os olhinhos azuis da cor do céu, travessos como os de uma criança.

Era esse o segredo!
— Eu descobri! — disse a eles, vitorioso — Descobri o segredo de seu bom humor! Vocês não deixaram de ser crianças, é isso!
O casal se entreolhou, percebi um ar de cumplicidade e, ao mesmo tempo, de esperteza. Como se dissessem, um ao outro, por telepatia: “Sabe de nada, inocente!”
Não pude deixar de pensar que aqueles dois ainda estavam me reservando uma surpresa, mas logo entramos na padaria e o moço veio perguntar:
— Mesa para três?
— Não, pra dez — respondeu dona Tetê — é que a gente vai ficar trocando de lugar…
Mais risadas, inclusive do atendente da padaria e minhas também. E de mais alguns clientes que estavam nas mesas próximas.
Tomás, já se sentando, pede ao atendente:
— Um café pro Júlio aqui, nosso convidado, e nossa dose de reforço, por favor.
O moço se afasta e eu pergunto:
— Dose de reforço? Como assim?
— Ora, mas é claro — responde ele — Já tomamos as quatro doses da vacina do Covid…
— … e agora, tomamos todos os dias a dose de reforço.
Fiquei meio sem entender…
— Mas… a dose de reforço não se toma na padaria…
O atendente veio trazendo três xícaras de café… e serviu duas delas ao casal, dizendo:
— Seu cafezinho reforçado! — e me serviu a última. Era meu café preto.
Curioso, fiquei olhando o casal tomar seus “cafezinhos reforçados”…
O atendente respondeu minha pergunta, sem nem ter sido feita:
— Essa é a dose de reforço deles, café com conhaque.
E se afastou, vi de costas seus ombros sacudindo da gargalhada. Dona Tetê me olha com seus olhinhos travessos, da cor do céu, e completa:
— Isso mesmo, moço. Nosso segredo… é a dose de reforço.
E lá estão ambos rindo novamente, espalhando alegria pela padaria.

Eu já sabia como não reclamar mais das manhãs de segunda-feira: era só me encontrar com dona Tetê e seu Tomás!
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Essa história também está adaptada em áudio no podcast do Treco Certo no Spotify. Para conhecer, basta clicar aqui!
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