Em 1918, gripe espanhola espalhou morte e pânico

Naquele ano, escolas brasileiras aprovaram todos os alunos. A busca de remédios milagrosos teve um efeito colateral inusitado, a criação da caipirinha

Parece filme de terror.

Cadáveres jazem na porta das casas, atraindo urubus. O ar é fétido. Os raros transeuntes andam a passos ligeiros, como se fugissem da misteriosa doença. Carroças surgem de tempos em tempos para, sem cuidado ou deferência, recolher os corpos, que seguem em pilhas para o cemitério. Como os coveiros, em grande parte, estão acamados ou morreram, a polícia sai às ruas capturando os homens mais robustos, que são forçados a abrir covas e sepultar os cadáveres. Os mortos são tantos que não há caixões suficientes, os corpos são despejados em valas coletivas e o trabalho se estende pela madrugada adentro.

Esse filme de terror, afinal não foi um filme… foi realidade! Isso ocorreu em 1918, quando a gripe espanhola invadiu o Brasil. A violenta mutação do vírus da gripe veio a bordo do navio Demerara, procedente da Europa. Em setembro desse ano, sem saber que trazia o vírus, o transatlântico desembarcou passageiros infectados no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro.

No mês seguinte, o país inteiro já está submerso naquela que foi a mais devastadora pandemia do século XX, matando mais de 50 milhões de pessoas em todo o mundo.

Em outubro e novembro de 1918, as manchetes dos jornais brasileiros se alternam entre a gripe espanhola no país e as negociações de paz na Europa, visando encerrar a 1a Guerra Mundial. É justamente o vaivém de soldados que faz o vírus mortal tocar todos os cantos do planeta.

Em todo o Brasil, os hospitais estão abarrotados. As escolas mandaram os alunos para casa. Os bondes trafegam quase vazios. Das alfaiatarias às quitandas, das lojas de tecido às barbearias, o comércio todo baixou as portas — à exceção das farmácias, onde os fregueses disputam a tapa pílulas e tônicos que prometem curar as vítimas da doença mortal.

Fon-Fon foi uma revista brasileira fundada no Rio de Janeiro em 1907. Seu nome era uma onomatopeia do ruído produzido pela buzina dos automóveis. Tendo como um de seus idealizadores o célebre escritor e crítico de arte Gonzaga Duque, tinha no enfoque dado a ilustração uma de suas principais características. Um grande exemplo dessa premissa foi a colaboração do pintor Di Cavalcanti em 1914. A revista, inclusive, tornou célebres ilustradores como Nair de Tefé, J. Carlos, Raul Pederneiras e K. Lixto. Tratava principalmente dos costumes e notícias do cotidiano e foi publicada até agosto de 1958.

Faltam estatísticas confiáveis a respeito das vítimas no Brasil. Mesmo assim, não há dúvidas de que a epidemia é avassaladora. O gráfico de óbitos anuais da cidade de São Paulo mostra um salto gritante quando chega 1918. Num único dia, o Rio chega a registrar mil mortes.

O Governo proíbe as aglomerações públicas. Os teatros e os cinemas, além de lacrados, são lavados com desinfetante. Pela primeira vez, as pessoas ficam proibidas de ir aos cemitérios no Dia de Finados — não só para evitar as multidões, mas também para impedir que se veja o estoque de corpos insepultos.

Os jornais estão repletos de anúncios de remédios milagrosos que se dizem capazes de prevenir e de curar a gripe. A oferta vai de água tônica de quinino a balas à base de ervas, de purgantes a fórmulas com canela. A procura é tão grande que as farmácias se aproveitam da situação e levam os preços às alturas. No Rio, a prefeitura reage tabelando o preço dos remédios.

 

Na cidade de São Paulo, a população em peso recorre a um remédio caseiro: cachaça com limão e mel. Em consequência, o preço do limão dispara, e a fruta some das mercearias. De acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça, foi dessa receita supostamente terapêutica que nasceu a caipirinha. Coincidência ou não, uma das peças de maior sucesso em São Paulo em 1918 se chama… A Caipirinha.

— A verdade é que a gripe não tem cura — diz o médico Lybio Martire Junior, presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina. — Diante de uma doença mortal nova e da falta de informação, a população fica apavorada e acredita em qualquer promessa de salvação. Até hoje é assim. Basta lembrar os primórdios da Aids.

Os pobres ao deus-dará

A epidemia escancara uma deficiência grave do Brasil: em termos de saúde, os pobres estão ao deus-dará. Não há hospitais públicos. Não é raro que as pessoas, assim que se descubram “espanholadas”, busquem socorro nas delegacias de polícia. Quem, aos trancos e barrancos, presta alguma assistência à população carente são instituições de caridade, como as Santas Casas e a Cruz Vermelha. As famílias ricas são menos atingidas do que as famílias pobres porque se refugiam em fazendas no interior do país, mantendo distância do vírus.

Dada a multidão que morre todos os dias, começa a correr no Rio a história de que a Santa Casa de Misericórdia, para abrir novos leitos, acelera a morte dos doentes em estado terminal. Isso se daria por meio de um chá envenenado administrado aos pacientes na calada da noite. Nasce, assim, a lenda do “chá da meia-noite”. Os jornais apelidam o hospital de “Casa do Diabo”.

No auge da crise, prefeitos e governadores se dão conta de que não podem permanecer de braços cruzados. Com certo atraso, distribuem remédios e alimentos, improvisam enfermarias em escolas, clubes e igrejas e convocam médicos particulares e estudantes de medicina.

Mas…

Do mesmo modo abrupto com que chega ao Brasil, a gripe espanhola desaparece repentinamente. Em dezembro, já são raros os contágios. Foram tantas as pessoas infectadas entre setembro e novembro que o vírus praticamente não tem mais a quem atacar.

Enfim terminado o filme de terror, os cariocas usam o Carnaval de 1919 como forma de exorcizar o fantasma da gripe espanhola. O Rio assiste, nos bailes e nos blocos de rua, àquela que talvez seja a folia mais desenfreada de que se tem notícia na cidade. Das marchinhas aos carros alegóricos, o tema da festa é um só: o “chá da meia-noite” — que não bota medo em mais ninguém…

 

 

Fonte:

elpais.com, Ricardo Westin

Esta reportagem faz parte da seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre o Jornal do Senado, a Agência Senado e o Arquivo do Senado brasileiro. Com pesquisa do Arquivo do Senado. Texto atualizado em 8 de maio de 2020 para incluir informações a respeito da morte do presidente eleito Rodrigues Alves.

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