Há cem anos o cinema conhecia Carlitos, o herói do homem comum

Por Inácio Araujo, crítico de cinema da “Folha de S. Paulo” e coordenador do curso “Cinema: História e Linguagem”.

Quando ninguém, ou quase ninguém, achava que o cinema era uma arte, só se admitia uma exceção: Charlie Chaplin, ou Carlitos, como se tornou conhecido. Desde 1914, quando estreou no cinema, descoberto por Mack Sennett, o rei da comédia do começo de Hollywood, notou-se que havia algo de muito particular nessa figura ágil e desafiadora. Não demorou para que Carlitos aparecesse como um fenômeno –só a irrupção da Primeira Guerra Mundial retardou uma consagração mundial ainda mais completa– e constituísse o tipo que o consagrou para sempre: o do vagabundo com ares nobres, caráter forte, contestador da ordem, inimigo do espúrio, amigo das garotas bonitas.

Sempre a dar um chute no traseiro do garçom metido a besta e a acolher um órfão, Carlitos impunha uma arte que chamava a atenção pelo humor (e nesse humor havia muito de desfaçatez) com que desmontava a ordenação da sociedade e combatia suas injustiças.

Mas o fazia de maneira especial. Desde que foi contratado pela Keystone, Chaplin impôs não apenas o tipo, mas logo em seguida assumiu também o controle dos filmes, da direção ao roteiro. Assim seguiriam as coisas nas outras empresas por que passou: a Essenay, a Mutual e a First National, antes de criar, com Griffith, Douglas Fairbanks e Mary Pickford, a United Artists, a companhia dos próprios artistas que haviam construído a possibilidade de não mais se submeter aos estúdios.

Como Carlitos, Chaplin gostava de ser dono de seu nariz. E, se Chaplin tornou-se um milionário graças a sua arte, como Carlitos ele nasceu miserável e soube compreender os pobres e suas dificuldades melhor do que qualquer outro. O fabuloso, no caso, é que podia mostrar não só sua solidariedade como o valor do homem oprimido com uma mímica única, em que as roupas serviam aos gestos, e os gestos à expressão facial. Um conjunto harmônico na desarmonia completa das situações em que se envolvia num mundo de força-bruta e das quais se saía com enérgica esperteza e inigualável imaginação.

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Assim nasceu o mito Carlitos. Herói mitológico de uma era, como antes fora Ullisses (para usar a comparação de André Bazin). Herói do homem comum, acossado pelo patrão, pelo senhorio inflexível, pelos seus serviçais metidos: em suma, por essa burguesia que conseguia impor-se às máquinas (não esquecer que o começo do século 20 é a era das grandes migrações, do processo de crescimento das metrópoles, de um novo entendimento do homem com a máquina). A esses ricos de verdade ou de fardamento Carlitos opunha os gestos nobres, uma  nobreza de alma que se desdobrava num corpo proletário, rebelde, sublevado.

À elaboração cuidadosa das gags correspondia uma filmagem trabalhosa. Para fazer os dois insuperáveis rolos de “O Imigrante”, por exemplo, uma de suas obras-primas,Chaplin precisou filmar 90 rolos. Em linhas gerais, para fazer 17 minutos filmou mais ou menos 15 horas…

Anúncio publicado na edição do dia 6 de julho de 1922 do jornal O Estado de S. Paulo, anunciando a estreia de “O Garoto”.

Sim, um gênio se faz com trabalho, com caráter. Tanto caráter que, quando chegou o cinema sonoro, Chaplin nunca aceitou que seu Carlitos falasse. “Luzes da Cidade”, de 1936, a última aparição do herói, tinha música e ruídos, mas não diálogos.

Esses surgirão em “O Grande Ditador”, é verdade, embora o discurso antológico em que  o ditador Hynkel ameaça o mundo seja um monte de ruídos incompreensíveis. Essa era a resposta do comediante judeu ao nazista, que ficou furibundo com o filme. Mas Chaplin sabia que Hitler é que imitava o seu bigodinho, e não o inverso. E sabia reduzir Hynkel/Hitler à insignificância, fazendo do humor uma gostosa arma de guerra.

E depois da guerra veio a Guerra Fria, a perseguição por sonegação de impostos (na verdade, perseguição ao britânico que não se dobrava às conveniências políticas do momento), o exílio: aquilo que melhor do que ninguém exprime Calvero, o triste palhaço de “Luzes da Ribalta”. É quando vai a Londres para apresentar seu filme que Chaplin decide renunciar à América, da qual se vingará em 1957 ao filmar “Um Rei em Nova York”.

Depois disso, Charles Chaplin só voltaria a filmar em 1965 sua “Condessa de Hong Kong”. O filme fracassa, apesar do elenco com Sophia Loren e Marlon Brando, apesar de ser defendido pelos chaplinianos radicais: ninguém vê mais a graça do palhaço, nem o gênio do diretor. Parece que o tempo de Chaplin, nascido em 1889, havia passado. Ele morreria em 1977.

Divirta-se com um trecho de seu filme “Idílio Campestre” (Sunnyside, 1919), uma amostra do talento desse gênio:

Comments

2 respostas para “Há cem anos o cinema conhecia Carlitos, o herói do homem comum”.

  1. Avatar de Rosa Maria Peixoto de Melo Rosa
    Rosa Maria Peixoto de Melo Rosa

    Julio, Que linda homenagem que gigante esse Chaplin em quem me espelho sempre em frases do tipo: “A beleza existe em tudo – tanto no bem como no mal. Mas somente os artistas e poetas sabem encontrá-la.” *Charles Chaplin*

    É isso acho que é por isso que amo tanto os artistas que assim como você sempre têm algo bom ou lindo para presentear o dia de quem os lê. Saudade! bjs Rosa

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    1. Avatar de Julio
      Julio

      Oi, minha rosa linda, que belas palavras. Fiquei emocionado. Vc anda sumida, não passa mais pelo Facebook? Bem, vamos nos ver, vamos marcar pra papear! Beijaço e obrigado!

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