A oferta cria sua própria demanda, será?
Juliano Giassi Goularti, Doutor pelo Instituto de Economia da UNICAMP
Em sua obra seminal A Riqueza das Nações (1776), o economista Adam Smith (1723-1790) argumenta que o livre mercado é guiado por uma espécie de mão invisível. Na teoria clássica, a busca pelo interesse individual de cada agente acaba promovendo o bem-estar coletivo. Partindo desse postulado, o economista francês Jean- Baptiste Say (1767-1832) desenvolveu sua teoria: os mercados sempre tendem ao equilíbrio, ou seja, não há demanda insuficiente no agregado, logo, não há possibilidade de excesso geral de oferta em
uma economia de mercado livre, isto é, elimina a possibilidade de uma crise de superprodução generalizada.

A lei de Say, ou lei dos mercados, foi publicada em 1803 no Tratado de Economia Política. Partindo da premissa de que a produção de bens e serviços gera, por si só, a renda necessária para adquiri-los, Say sustentou através de modelos matemáticos que a oferta cria sua própria demanda. Isto porque, em um sistema de livre mercado, a produção total gera, por si só, a demanda necessária para absorvê-la, levando a um ponto de equilíbrio, como ilustrado na Figura 1.

Para Say, a oferta e a demanda não são independentes, mas duas faces da mesma moeda. Em seu modelo teórico, as crises econômicas de superprodução seriam impossíveis em longo prazo, pois qualquer excesso de bens em um setor seria compensado por uma escassez em outro. Isto é, as crises de superprodução e desemprego seriam apenas fenômenos temporários e locais, corrigidos automaticamente através do ajustes de
preços e a realocação de recursos, o que garantiria que a produção encontrasse um
comprador, mantendo a economia em um estado de equilíbrio. Se houvesse um
excesso de oferta de bens, os preços cairiam, e essa queda de preços levaria a um aumento
da demanda, restabelecendo um novo ponto de equilíbrio.
A lei formulada por Say foi um dos pilares de sustentação da economia clássica que dominou o pensamento econômico até a Grande Depressão* de 1929, quando falta de demanda e um alto nível de desemprego abalou a confiança no princípio do equilíbrio geral. Com a crise, o desemprego nos Estados Unidos disparou, de cerca de 3% em 1929 para mais de 25% em 1933. Milhões de pessoas perderam seus empregos e permaneceram desempregadas por anos. A lei de Say previa que, com a queda dos salários, as empresas iriam rapidamente recontratar. Desta forma, para os economistas clássicos, isso inclui Say, o pleno emprego era o estado natural da economia. No entanto, o desemprego não se
corrigiu por conta própria. O sistema capitalista, que em essência era visto como autossuficiente e autorregulável pela mão invisível, estava em crise.
Em meio à crise gerada pela bolsa de valores estadunidense, John Maynard Keynes (1883-1946), em sua obra Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (1936), questionou os postulados da lei de Say, onde “(…) os postulados da teoria clássica se aplicam apenas a um caso especial e não ao caso geral (…),” em outras palavras, os mercados não se autorregulam. A Grande Depressão foi a prova, para Keynes, de que o sistema de preços não se ajusta sozinho para garantir o pleno emprego. Desta forma, a crise de 1929 não
apenas refutou a Lei de Say em um nível prático, mas também pavimentou o caminho
para uma revolução no pensamento econômico, com a ascensão do keynesianismo e o fim da dominância ideológica da economia clássica.
A ideia de que os postulados da economia clássica, em particular de Say, poderiam ser questionados, era impensável até então, apesar de Karl Marx (1818-1883) ter feito crítica à economia política de Adam Smith e David Ricardo (1772-1823) em O Capital (1867). Como Karl Popper (1902-1994) descreveu na sua teoria da refutabilidade, não importa quantas vezes uma teoria (neste caso, a de Say) seja confirmada, ela nunca pode ser provada como 100% verdadeira. Por exemplo, a afirmação “todos os cisnes são brancos” pode ser confirmada por centenas de observações de cisnes brancos, mas uma única
observação de um cisne negro é suficiente para refutar a teoria por completo. Foi o que
Keynes fez, refutou a lei de Say, e os postulados da economia clássica desmoronaram como um castelo de cartas.
De toda forma, o debate da lei de Say pode ser enriquecido ao conectar-se com o pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Nessa perspectiva, a economia não é vista apenas como um sistema de trocas estáticas, como é para Say, mas como um processo dinâmico impulsionado por suas próprias contradições. A interação entre a oferta e a demanda, em vez de ser um simples ajuste estático, se tornaria um processo dialético. As contradições entre o que é produzido e o que é consumido impulsionam o desenvolvimento dos mercados. A superprodução (oferta maior que a demanda) e a escassez (demanda maior que a oferta) não são apenas falhas de mercado, mas as próprias forças que movem a economia e, consequentemente, o desenvolvimento do modo de produção capitalista. O mercado, nesse sentido, não busca um ponto de equilíbrio perfeito e final, mas se encontra em um estado de constante movimento, transformação e contradição.
Portanto, assim como a singularidade** é um ponto de ruptura que a relatividade geral de Albert Einstein (1879-1955) não pode descrever, ou melhor, perde eficácia, o mercado é um ambiente de rupturas e crises onde a lei de Say não tem aplicabilidade. Da mesma forma que a gravidade de Isaac Newton (1643-1727) distorce o espaço-tempo de Einstein, as crises, que são a contradição capitalista, distorcem o equilíbrio geral, provando que a
abstração teórica de Say não se sustenta.
Da mesma forma que, na cosmologia moderna, a teoria do estado estacionário do universo*** [de autoria do astrofísico Thomas Gold (1920-2004) e de Fred Hoyle (1915-2001), e do matemático Hermann Bondi (1919-2005), que prevê que o universo não teve um começo no tempo e estaria em um estado permanentemente estacionário, sem mudanças em sua densidade ao longo do tempo] não tem validade cosmológica, o mesmo se aplica para a lei de Say na economia. Contudo, ambas as teorias – do estado estacionário do universo e da lei de Say – permanecem importantes para o debate histórico, mas não são válidas para descrever o movimento da realidade cosmológica e econômica.
***
Notas:
* A Grande Depressão foi a mais grave e longa crise econômica da história moderna, que começou nos Estados Unidos em 1929 com o colapso da Bolsa de Valores e se espalhou pelo mundo, causando desemprego em massa, pobreza, falências bancárias e quedas drásticas na produção e nos preços.

Causas principais
- Especulação financeira: O fácil acesso ao crédito e o excesso de especulação na Bolsa de Valores foram fatores cruciais.
- Superprodução e desigualdade: Houve um descompasso entre a produção e o consumo, agravado pela desigualdade de renda, onde grande parte da riqueza estava concentrada em poucas mãos.
- Políticas liberais: A crença de que o mercado se autorregulava e a manutenção de políticas econômicas liberais também contribuíram para a desaceleração.
Consequências
- Desemprego e pobreza: Milhões de pessoas perderam seus empregos, levando ao aumento da pobreza e da falta de moradia.
- Falências bancárias: O colapso da Bolsa desencadeou uma onda de falências bancárias, aumentando o pânico e a instabilidade.
- Impacto político: A crise enfraqueceu as democracias liberais e as ideias liberais, estimulando a ascensão de regimes autoritários na Alemanha e na Itália.
- Mudança no papel do Estado: A crise mostrou a insuficiência dos mecanismos de mercado, e o Estado começou a ter um papel mais ativo na economia, principalmente através do New Deal nos EUA, com investimentos em obras públicas e programas de ajuda social.
Fim da crise
A Grande Depressão só foi superada completamente com o fim da Segunda Guerra Mundial, que, ironicamente, também foi, em parte, um reflexo da crise e impulsionou a recuperação econômica mundial.
**O que é uma singularidade?
- É um ponto no espaço-tempo onde as densidades e a curvatura se tornam infinitas.
- As equações da Relatividade Geral “não funcionam” ou falham em descrever a física nessas condições extremas.
O que é a Relatividade Geral?
- A teoria de Einstein descreve a gravidade não como uma força, mas como uma curvatura do espaço-tempo causada por objetos com massa e energia.
- Quanto mais massa, maior a curvatura do espaço-tempo ao redor.

Onde as singularidades são previstas?
- Buracos Negros: No centro de um buraco negro, a matéria colapsa a um ponto de densidade e curvatura infinitas.
- Big Bang: O estado inicial do universo também é previsto como uma singularidade de densidade e temperatura infinitas.

O buraco negro com uma massa 7 bilhões de vezes maior que a do Sol, no centro da galáxia elíptica Messier 87, na primeira imagem divulgada pelo Event Horizon Telescope
(10 de abril de 2019)
A relação entre singularidades e a Relatividade Geral:
- A Relatividade Geral prevê que essas singularidades devem existir, mas também aponta os seus limites.
- As singularidades são, na verdade, “faróis”, marcando os limites do nosso conhecimento e indicando áreas onde a teoria atual é incompleta.
Por que as singularidades são um problema?
- Por serem pontos onde as leis conhecidas da física falham, elas sugerem que outra teoria, como uma teoria quântica da gravidade, é necessária para descrever o universo nessas condições extremas.
*** A Teoria do Estado Estacionário
Foi uma alternativa ao Big Bang proposta na década de 1940, afirmando que o universo não tem começo nem fim, mantendo uma densidade constante através da criação contínua de matéria à medida que se expande. Contudo, foi desacreditada na cosmologia moderna, pelas descobertas de evidências como a radiação cósmica de fundo em micro-ondas, que indicam um universo com uma densidade menor no passado e, portanto, com início.
Por que foi abandonada pela Cosmologia Moderna:
- Descoberta da radiação cósmica de fundo: A detecção da radiação cósmica de fundo em micro-ondas em 1965 (por Arno Penzias e Robert Wilson) provou que o universo era mais quente e denso no passado, contradizendo a ideia de um estado estacionário imutável.
- Abundância de elementos leves: A teoria não conseguia explicar a abundância observada de elementos leves (hidrogênio, hélio e lítio), que é uma previsão da teoria do Big Bang.
O Modelo Padrão Atual:
- A cosmologia moderna é dominada pela teoria do Big Bang, apoiada por fortes evidências observacionais.
- Esta teoria descreve um universo que começou a partir de um estado extremamente quente e denso e que está em constante expansão e resfriamento.

Deixe um comentário