O leite condensado, na verdade, não é condensado. Apesar do nome, o leite passa por evaporação. Ele é centrifugado para remover as impurezas e recebe açúcar, que ajuda a conservar. Depois vai para um evaporador a vácuo com temperatura até 70°C e, depois de esfriar, recebe lactose em pó.

O primeiro registro de um método de concentração do leite é de 1827, na França. Mas só virou processo industrial em 1853 com o empresário americano Gail Borden Jr. Ele queria diminuir o volume e aumentar a vida útil do leite, que muitas vezes estragava no caminho da fazenda às casas na cidade (a pasteurização só seria inventada na década seguinte, e a história dos refrigeradores ainda estava em sua infância).  Porém, o leite condensado só se popularizou mesmo com a Guerra Civil Americana (1861-1865), quando foi adotado como ração de soldados. As latinhas de 395 gramas eram fáceis de transportar e estocar. Além disso, elas continham 1 300 calorias, 80 gramas de proteínas e gordura e mais de 200 gramas de carboidrato – ótima fonte de energia. E os soldados, quando voltavam para casa, falavam maravilhas dele, o que aumentou sua procura de tal modo que a fábrica de Borden Jr. não dava conta!

Na verdade, foi a facilidade de estocar e transportar as latinhas de leite que determinaram sua adoção como parte da ração dos soldados pelos Exércitos. Essa ração, antes da adoção dessas latinhas, consistia basicamente do que se vê na foto abaixo:

Típica ração dos soldados da União: bolachas duras, charque e legumes desidratados.

As rações dos soldados, tanto confederados quanto da União, eram bastante similares, porque havia um grande problema em conservar os alimentos, além da logística de transportá-los para as frentes de batalha. Cada ração devia durar em torno de três dias e se baseava em carne e pão. Normalmente, o soldado recebia carne de porco salgada. O pão era uma bolacha dura e sem gosto feita de farinha de trigo, chamada de “quebra-dentes” pelos soldados. Esse “pão” era raramente comido puro, os soldados preferiam assá-los na fogueira, ou esfarelar cada um e misturar na sopa, ou ainda fritar junto com a carne de porco.

O feijão era motivo de festa, quando eles conseguiam arrumar uma panela e tempo para cozinhá-los. Já conseguir café e açúcar era a mais importante tarefa de um soldado.

Os grãos de café eram distribuídos verdes, e cabia aos soldados torrar e moer esses grãos. Mas essa tarefa era das mais desejáveis, como lembrou em seu diário o soldado John Billings: “Que dádiva de Deus isso parecia para nós… A gente ficava completamente esgotado depois de uma noite inteira marchando… Então eu me lavava, se tivesse água para isso, fazia e bebia minha caneca de café e então me sentia novo e revigorado como se tivesse dormido bem durante a noite toda!”

A alimentação mudava de figura quando as tropas estavam acampadas perto das rotas de suprimento. Quando isso acontecia, as bolachas eram substituídas por pães feitos de farinha de milho e a carne de porco por carne enlatada – ou carne fresca, quando possível. Além disso, arroz, ervilhas e feijão estavam disponíveis, assim como batatas, melaço, sal e o vinagre, que servia para mascarar o gosto rançoso da carne enlatada. Às vezes, havia ainda frutas e legumes frescos, quando possível, mas geralmente ou eram frutas secas ou enlatadas.

Quando o leite condensado foi acrescentado à ração, foi de fato um sucesso, porque o soldado podia adicionar água e tomá-lo puro ou com o café. Então, o Exército fez a mesma experiência com o café, para evitar transportar os grãos. Eles secaram enormes toneis de grãos de café e conseguiram uma espessa lama marrom que foi chamada de “essência de café”, e essa lama foi enlatada. Em tese, você poderia pegar um pouco dessa meleca, misturar com água e teria então café instantâneo. Mas a experiência não foi bem sucedida, porque a mistura ficou tão porca que os soldados se recusaram a bebê-la.

Mas houve pelo menos mais uma tentativa de preservação de alimentos que teve melhor resultado, o chá. O Exército da União importava o chá da Inglaterra, que por sua vez o trazia da Índia. Para preservar o chá durante a longa viagem pelo oceano, e depois distribuí-lo pelas tropas, o governo britânico enviava o chá em tijolos, e não em folhas soltas – tijolos de chá era um costume adotado na China há milênios. Os tijolos eram então partidos e pequenos pedaços fornecidos aos soldados, que os raspavam e faziam seu chá…

Quando a União bloqueou os suprimentos para os confederados, eles tiveram que adotar um racionamento nas rações – imagina, racionar aquilo! -, que passaram a se limitar a bacon e bolachas de milho. O café desapareceu e os sulistas trocavam tabaco por grãos de café no mercado negro, ou tentavam substituí-lo por uma infusão de chicória…

Dureza… Mas as rações para soldados sempre foram um problema para os exércitos, mesmo em tempos modernos. Mas falarei sobre isso noutra ocasião. Agora, vou comer alguma coisa – que certamente não será nem bacon e nem a bolacha “quebra-dentes”.

Fontes:

Superinteressante

The New York Times

“The Civil War Dictionary” by Mark M. Boatner III

civilwar.com

marinersmuseum.org

13 respostas para “O leite condensado e a Guerra Civil americana”.

  1. […] já havia falado rapidamente sobre o leite condensado em outro post, aqui, e vou repetir a história, completando depois com a do Leite Moça no […]

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  2. […] Procurando uma forma de prolongar o armazenamento do leite, reduzir seu volume e contornar a falta de refrigeração, o inventor americano Gail Borden patenteou um método para fabricar leite condensado em 1856. A novidade ficou meio esquecida até o início da Guerra de Secessão, quando o exército dos estados do Norte incluiu o produto na ração das tropas, comprando grande quantidade de leite condensado. (trato com mais profundidade esse assunto neste post aqui). […]

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  3. Vi muitos filmes filmes de Cawboys onde comiam feijão enlatado e pêssego, acredito que eles eram também bem antigos nessa tentativa.

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    1. Avatar de Estaécio Antunes da Luz
      Estaécio Antunes da Luz

      Que enriquecedor todo o conteúdo! Da explanação inicial, a correção da substituição chicória por ervilhas, até a própria história da ervilha no interior do Amazonas.

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      1. Sim, foi excelente essa correção do leitor, é por essas e outras que faço este blog, sem fins lucrativos, para aprender com as pessoas! Muito obrigado!

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  4. Um tanto de uma história e tanto! Gostei demais disso!

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    1. Bem legal, né? Quem diria que essa foi a origem do leite condensado!

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  5. Acho que a margarina também entrou nessa de criarem para ração de soldado…

    E falando nisso tem a do Monty Python fazendo sátira com uma marca de presunto enlatado 😀
    ll

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    1. É mesmo, ah ah ah, muito boa!

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  6. Avatar de Mitsuo Suwa Osaka
    Mitsuo Suwa Osaka

    Boa tarde, na verdade o café não foi substituído por uma infusão de chicória, mas sim por ervilhas torradas. A escassez do produto, devido ao bloqueio imposto pelo Norte, obrigou os Soldados sulistas a buscar uma alternativa, entre elas a chicória e sementes de carvalho, mas, a que mais se aproximou do café foi as sementes de ervilha torradas e moídas, e claro, normalmente, os “quebra dentes” também chamados de ” biscoitos de ferro” eram amolecidos nessa infusão. Em 1968, aqui no interior do Amazonas, um amigo meu, que havia lido essa história em uma enciclopédia, colocou a prova na prática, pois no município que ele residia com os pais, devido a seca dos rios, não havia suprimento de café, mas, havia excesso de ervilha nos empórios locais. E deu tão certo que no dia seguinte que foi anunciado pela sua mãe para os vizinhos essa descoberta, simplesmente os comerciantes vendo a saída monstruosa da ervilha, triplicaram seu preço, afinal, leis de mercado também valiam por lá…

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    1. Puxa, muito obrigado pela correção e pelo esclarecimento! Obrigado mesmo!

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    2. Avatar de Estaécio Antunes da Luz
      Estaécio Antunes da Luz

      Que enriquecedor todo o conteúdo! Da explanação inicial, a correção da substituição chicória por ervilhas, até a própria história da ervilha no interior do Amazonas.

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    3. Muito bom, obrigado pelas informações!

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